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O ano de 2023 fica inevitavelmente marcado pelo crescente número e escala dos conflitos armados em todo o mundo. Não há balança para comparar a tragédia que se abateu sobre a vida de milhões de pessoas, mas temos também de olhar para aquilo que será o futuro destas regiões. Estes conflitos destroem também o capital natural e a capacidade de fornecimento dos serviços fundamentais para as pessoas que ali vivem.
O New York Times escreveu sobre este tema e refere como os danos nas inúmeras zonas industriais podem ter já libertado substâncias perigosas nos solos e corpos de água. Shumilova e colegas publicaram um artigo na Nature Sustainability onde demonstram os impactes do conflito armado na Ucrânia nos recursos hídricos, como contaminação por munições, disrupções no abastecimento e tratamento de águas, entre outros. Outras fontes, como a UNEP e a IRRC têm chamado a atenção para os impactes de longo prazo e como o direito internacional relativo à proteção ambiental estabelece a obrigação de reparações.
Face à tragédia imediata que os conflitos armados trazem, as preocupações futuras relacionadas com as alterações climáticas, biodiversidade ou depleção de recursos abióticos são colocados em segundo plano. Cabe também a nós, enquanto especialistas de ambiente, manter estes temas na agenda e trazer soluções de mitigação.
Após uma longa espera, Portugal reviu o enquadramento estratégico para os resíduos, alinhando com as orientações europeias publicadas em 2018. No caso dos resíduos urbanos, foi publicado o Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos 2030 (PERSU 2030), que pretende contribuir para a prevenção e para a preparação para reutilização e reciclagem dos resíduos urbanos, permitindo alcançar a redução de consumo de matérias-primas primárias.
Existem vários aspetos que não são novidade e decorrem já do RGGR, como os novos sistemas de recolha. Em 2024 terão de estar implementados os sistemas de recolha seletiva e tratamento na origem de biorresíduos. A partir de 2025 terá de se avançar na recolha de frações emergentes de resíduos, como os têxteis, os volumosos, os resíduos de construção e demolição de pequenas reparações em habitações, os óleos alimentares usados e os resíduos perigosos gerados nas habitações.
O PERSU2030 mantém uma lógica de metas, associando o cumprimento das metas nacionais com as metas dos municípios e SGRU. Considerando a ambição subjacente, que implica revolucionar a gestão de RU nos próximos sete anos, será necessário mais. A 3drivers tem defendido uma abordagem de pacto sectorial, assente no envolvimento e compromisso das inúmeras partes interessadas e com apoio político alargado. Apesar de não ocupar a atenção do país da mesma forma, a gestão de RU exigirá um investimento na mesma ordem de grandeza que o novo aeroporto de Lisboa e tem também o potencial para ser um motor de criação de riqueza no país.
A recolha de biorresíduos tem sido defendida há pelo menos 20 anos no nosso país. Na sequência da primeira versão da Diretiva Aterro, Portugal publicou em 2003 a Estratégia Nacional para a Redução dos Resíduos Urbanos Biodegradáveis destinados aos Aterros (ENRRUBDA). Esta previa um modelo operacional baseado nas instalações de tratamento mecânico-biológico em complemento com o aumento da recolha seletiva de orgânicos. Apesar de esforços localizados, mas meritórios, durante estes 20 anos, só em 2023 assistimos ao alargamento das redes de recolha para chegar ao cidadão e, em alguns casos, à escala de todo o município.
Não podendo fazer uma lista exaustiva dos serviços implementados, não podemos deixar de destacar o trabalho de municípios como Cascais, onde todos os munícipes podem já separar os seus biorresíduos, ou Guimarães, onde o tarifário já irá beneficiar quem separar ou tratar os biorresíduos. Muitos outros municípios têm já viaturas e contentores para parte da população, mas será necessário continuar a investir para garantir que a maioria dos portugueses têm acesso à recolha ou tratamento na origem. Teremos de aguardar pelo RARU em meados de 2024 para avaliar o impacte destes sistemas de recolha, mas existe uma expetativa positiva dos agentes do sector.
A rápida evolução observada em 2023 deve-se, em grande medida, ao apoio do PO SEUR e do Fundo Ambiental aos municípios. A interrupção desta política implicará um recuo e desmotivação da população. É assim urgente alinhar o FA e os PO regionais, nos quais se concentram os apoios à política de resíduos no atual Quadro de Parceria entre Portugal e a Comissão Europeia.
A União Europeia tem procurado acompanhar a ambição dos seus objetivos da política de produto e política de resíduos com diretivas e regulamentos cada vez mais focados e exigentes. Os objetivos de prevenção, reutilização e reciclagem só são possíveis alterando precisamente a política de produtos, evitando ao máximo a colocação de produtos com baixo potencial de reciclagem.
Em dezembro 2023, o Parlamento Europeu e o Conselho alcançaram um acordo provisório sobre o Regulamento Conceção Ecológica de Produtos Sustentáveis, que fará com que os produtos durem mais tempo, utilizem a energia e os recursos de forma mais eficiente, sejam mais fáceis de reparar e reciclar, contenham menos substâncias preocupantes e incluam mais conteúdo reciclado. A lista de produtos abrangidos será atualizada, com prioridade para os produtos com elevado impacte, como os têxteis, mobiliário, ferro, aço e alumínio, pneus, tintas, lubrificantes, produtos químicos e equipamentos elétricos e eletrónicos.
Entre as medidas que serão impostas, destaca-se a limitação à destruição de produtos não vendidos e a definição de passaportes digitais de produto, que ajudarão os consumidores e as empresas a fazer escolhas mais sustentáveis, bem como serão úteis para as autoridades aduaneiras e de fiscalização. Este Regulamento procurará também promover a igualdade de condições de concorrência para os produtos sustentáveis no mercado europeu e reforçar a competitividade das empresas que disponibilizam produtos sustentáveis.
Apesar da sua importância para uma economia circular, num mercado comum os Estados-membros estão limitados no tipo de políticas de produto. É por esse motivo que é fundamental que a UE continue a exercer a sua missão através dos regulamentos, abrangendo toda a região simultaneamente, e através de processos legislativos mais fundamentados do que é possível à escala nacional.
A twin transition promete abrir caminho para uma economia mais circular, mas durante anos a promessa era maior do que o impacte real. Em 2023, projetos como a Site Zero, uma inovadora unidade de triagem de resíduos de plástico que promete separar 11 tipos de plástico, ou a sensorização de contentores em Madrid demonstram que é possível utilizar as tecnologias digitais para aumentar a circularidade das sociedades.
Portugal não está fora desta discussão. Os municípios e os SGRU têm adotado as tecnologias, incluindo com recurso à inteligência artificial, para aumentar a eficiência nas recolhas e triagens, mas a ritmos diferentes dada a fragmentação do sector. Em 2023, reconhecendo a importância da twin transition, o sector dos resíduos iniciou a Agenda Mobilizadora CircularTech para ajudar as empresas e entidades públicas a liderar a digitalização no sector.
O caminho não será sem recuos ou passos em falso. Já tentámos apps, plataformas de trocas de materiais, “UBERs dos resíduos”, robots de reciclagem, mas nada ganhou a escala necessária para o impacte desejado. Precisamos de continuar o caminho, aprendendo com cada passo para atingirmos o impacte desejado.
Segundo o INE, em 2022, Portugal registou o ano mais quente desde que há registo com a temperatura média do ar a ser de 16,64 °C, o que significa um desvio de +1,38 °C relativamente à média climatológica observada entre 1971 e 2000.
O ano de 2022 fica também marcado pela inversão da tendência decrescente de emissão de GEE, que se registava em Portugal desde 2017. Apesar de provisórios, os dados mostram um ligeiro acréscimo face a 2021 (+0,8%), totalizando quase 50 762 kt CO2eq, considerando o sector LULUCF. Os transportes representam quase 30% do total das emissões, mas os outros vetores de emissão têm também pesos que individualmente representam entre 12 a 14% do total de emissões de GEE. O sector dos resíduos tem também um caminho a percorrer já que pesa quase 9% do total de emissões.
Para que os objetivos definidos sejam atingidos, em particular a neutralidade carbónica até 2045, é crucial acelerar na descarbonização destes sectores, por exemplo, através da aposta no desenvolvimento e implementação de tecnologias e combustíveis renováveis e verdes, promoção da eletrificação do parque automóvel, utilização de sistemas de inteligentes de gestão de tráfego e melhoria da gestão de resíduos.
Mas há também aspetos positivos que merecem ser destacados para inspirar o caminho a percorrer. Em 2023, Portugal atingiu 149 horas consecutivas de produção de energia renovável, um valor recorde que permitiu superar as necessidades de consumo do país em cerca de 262 GWh.
A COP28 ficou marcada pela conclusão do primeiro Global Stocktake, uma componente fundamental do Acordo de Paris, com o intuito de avaliar e monitorizar as ações globais de ação climática, identificar as lacunas e definir novos caminhos para o alcance dos objetivos definidos. Os resultados deste balanço refletem um atraso das Partes no que toca ao cumprimento dos objetivos estabelecidos no âmbito do Acordo de Paris: as atividades antropogénicas, principalmente através das emissões de GEE, já provocaram um aumento de temperatura global na ordem dos 1,1 ºC. Os resultados do balanço apontam ainda para o facto de que, para o cumprimento do Acordo de Paris, as emissões de GEE terem de ser reduzidas em 43% até 2030, em comparação com os níveis de 2019.
No seguimento dos resultados apresentados neste balanço global, destaca-se o estabelecimento do acordo (The UAE Consensus) para o abandono dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos, de forma a se alcançar emissões zero até 2050. Este acordo promove ainda a definição de objetivos nacionais específicos de redução de emissões para a economia como um todo (Nationally Determined Contributions – NDC); a definição de objetivos para a triplicação das energias renováveis e duplicação da eficiência energética, até 2030; assim como a oportunidade de reestruturação dos mecanismos de financiamento climático.
Como principais resultados da COP28 destacaram-se também os acordos para operacionalizar o Fundo de Perdas e Danos (Loss and Damage Fund), o qual visa apoiar os países impactados pelas alterações climáticas; e para o restabelecimento do Fundo Verde para o Clima (Green Climate Fund).
O final da COP28 fica, no entanto, marcado pela divisão de opiniões em relação aos acordos estabelecidos. Por um lado, algumas entidades como ONGA, cientistas e representantes de algumas das regiões mais afetadas pelas alterações climáticas, defendem que os níveis de ambição adotados pelos acordos ficam muito aquém do que é necessário para responder à dimensão do problema que a sociedade global enfrenta, descurando, em alguns casos, as dimensões económicas e sociais. Por outro lado, vários decisores políticos e, sobretudo, representantes de países desenvolvidos, encaram o consenso para a tomada de decisão destes acordos como marcos históricos entre as várias Partes, defendendo o potencial de alavanca e ponto de viragem na próxima década de ação climática.
A realidade é que, muitas vezes, estes grandes eventos de decisão política e estratégica mundial ficam aquém das expetativas, uma vez que a sua natureza, escala e frequência de ocorrência fazem com que as decisões e resultados decorrentes pareçam pouco significantes. Deste modo, o impacte real decorrente das medidas da COP28 deverá ser acompanhado com regularidade a uma escala regional, por exemplo, seguindo as NDC adotadas pelas Partes.
No final de 2023, o Governo português aprovou o Decreto-Lei, publicado já no início de 2024, que instituiu o mercado voluntário de carbono em Portugal e as regras para o seu funcionamento.
Entre os objetivos que se pretendem alcançar, destaca-se a promoção de projetos de mitigação de emissões de GEE no território nacional, incluindo a possibilidade de participação de indivíduos e organizações, tanto públicas como privadas, através de iniciativas de redução de emissões ou sequestro de carbono. A desejada mobilização da sociedade civil e dos agentes locais e regionais, será também mais uma forma de efetivar em ações concretas a preocupação que os portugueses demonstram perante as alterações climáticas.
De acordo com as componentes e princípios de funcionamento do mercado, uma das principais vantagens a assinalar é a certificação e monitorização dos projetos implementados, permitindo uma base de atribuição de créditos mais credível e transparente. Para além disso, no caso de serem integrados projetos promovidos por privados, realça-se a possibilidade de serem garantidos rendimentos económicos de curto prazo aos produtores florestais que, de outra forma, só os obteriam passadas várias décadas, permintindo assim a liquidez necessária para a continuidade e manutenção dos projetos a implementar.
A concretização do mercado voluntário de carbono e consolidação dos projetos de mitigação irá também contribuir para o cumprimento dos objetivos nacionais e internacionais assumidos, como o PNEC 2030, o RNC 2050 e os ODS da Agenda 2030.